Monsier Austero

   Querido amigo,

   Estou escrevendo por que ela disse que você me ouviria e me entenderia, e não tentou dormir com aquela pessoa naquela festa, embora pudesse ter feito isso. Por favor, não tente descobrir quem ela é, por que você poderá descobrir quem eu sou, e eu não gostaria que você fizesse isso. Chamarei as pessoas por nomes diferentes ou darei um nome qualquer por que não quero que descubram quem eu sou. E não há nada de ruim nisso. É sério.

   Só preciso saber que existe alguém que ouvi e entende, e não tenta dormir com as pessoas, mesmo que tenha oportunidade. Preciso saber que essas pessoas existem.
   Acho que, de todas as pessoas, você entendera, por que acho que você, entre todos os outros, esta vivo e aprecia o que isso significa. Pelo menos eu espero que seja assim, por que os outros procuram por você em busca de força e amizade, e é tudo muito simples. Pelo menos foi o que eu soube.

   Então, esta é a minha vida. E quero que você saiba que sou feliz e triste ao mesmo tempo, e ainda estou tentando entender por que sou assim...

   
Eu tive uma sensação na sexta a noite ...


   Alguma coisa me aconteceu, já não posso mais duvidar. Isso veio como uma doença, não como uma certeza comum, não como uma evidencia. Instalou-se pouco a pouco, sorrateiramente: senti-me um pouco estranho, um pouco incomodado, e foi tudo. Uma vez no lugar, não mais se mexeu, ficou quieto e consegui me persuadir de que não tinha nada, de que era um alarme falso. E eis que agora a coisa se expande.

{...}

   Em minhas mãos, por exemplo, há algo de novo, uma determinada maneira de segurar meu cachimbo ou meu garfo. Ou então é o garfo que tem agora uma determinada maneira de ser segurada, não sei. Ainda há pouco, quando ia entrando em meu quarto, parei de repente, porque sentia em minha mão um objeto frio que retinha minha atenção através de uma espécie de personalidade. 
   Abri a mão, olhei: estava segurando apenas o trinco da porta. Esta manhã, na biblioteca, quando o Autodidata veio me cumprimentar, levei dez segundos para reconhecê-lo. Via um rosto desconhecido, apenas um rosto. E depois havia a sua mão, como um grande verme branco, em minha mão. Soltei-a logo e o braço descaiu frouxamente.

   Também na rua há uma quantidade de ruídos estranhos que persistem.
   Portanto, ocorre uma mudança durante essas ultimas semanas. Mas onde? É uma mudança abstrata que não se fixa em nada. Fui eu que mudei? Se não fui eu, foi esse quarto, essa cidade, essa natureza; é preciso decidir... 

   O Sr. Austero trás em suas cartas, todas as angustias do ser humano moderno, filho da sociedade paulistana, que estuda e trabalha, e tem família e amigos, e é obrigado a viver nesse território de incertezas e verdades absolutas, e ele lhe dá de presente esse diário,e tenta, junto com você, encontrar caminhos menos dolorosos no desafio da sobrevivência.

Referências
The Perks Of Being a Wallflower; de SHBOSKY, Stephen
La Nauseé; de SARTRE, Jean-Paul
Five O'clock Tea With Aristotle and OtherItems; de WILDE, Oscar
Memórias Póstumas de Brás Cubas; de ASSIS, Machado de 

Nenhum comentário:

Postar um comentário