Nouvelle Vague

Querido amigo, 

   Quero continuar aquela história que comecei no outro dia mas fui impedida de continuar por contra-tempos, peço que me perdoa, e prometo-lhe ser rica em detalhes dessa vez. Ou pelo menos, direi o que eu sei, pois não cabe a mim alterar os fatos, ou mesmo inventa-los. Se tiveres curiosidade, depois lhe indico as fontes que utilizei  para contar-lhe essa historia.São inúmeros filmes e documentários, que me fazem desejar ter vivido em outra época, uma que eu diria ser, deveras, de ouro. E eu espero que goste de minha historia, pois ela também é minha, e também será sua, assim que você começar a lê-la.



Une Histoire D'eau

 
   Jacques Franju não foi cineasta. Nem roteirista. Nem produto. Nem ator. Mas não menosprezemos esse nome, pois ele teve um papel deveras importante na historia que vou contar.

   Nos idos de 1934, ele apresentou o irmão a um colega da de trabalho. Tal qual Georges Franju, Henri Langlois era um jovem apaixonado pela sétima arte. Da amizade instantânea entre dois apaixonados, duas sólidas instituições francesas surgiriam: primeiro a Cinemateca, depois a cinefilia.

   Langlois conheceu o cinema quando este ainda era mudo. Na adolescência em Paris, ele desfrutou ao máximo as atrações de uma cidade que reconhecia os filmes como obras de arte desde a década de 1910. Dois anos mais velho que ele e com experiência em teatro, Georges Franju sonhava em se tornar cineasta. O objetivo de Langlois não era conhecer estrelas ou dirigi-las. Era preservar uma época que começava a se perder.


   Com o advento do cinema sonoro, no final da década de 1920, produtores e distribuidores em todo o mundo se livravam das cópias sem som, com a intenção de extrair a prata que compunha a película cinematográfica. Langlois salvou preciosidades do período mudo por conta própria, armazenando-as na banheira de casa por alguns meses. Onde os demais enxergavam dinheiro, este homem viu um patrimônio. E tratou de organizá-lo de modo a garantir o acesso do público.

       Já com 150 cópias adquiridas pessoalmente, Langlois fundou a Cinemateca Francesa em 9 de setembro de 1936.O sócio desse sonho era Georges Franju, que dias antes comprara um galpão abandonado nos arredores de Paris.O acervo tem sido exibido regularmente ao público desde 1955, quando a Cinemateca se impôs com uma programação que não fazia distinção entre clássicos absolutos e fitas obscuras.As sessões na rua Ulm atraíram jovens como Jean-Luc Godard, oriundo de uma estável família burguesa fincada na Suíça.Também eram assíduos o aspirante a delinquente François Truffaut e o professor de francês e literatura Jean-Marie Maurice Schérer (vulgo Éric Rohmer),entre outros cinéfilos que se rendiam em devoção a seus filmes e diretores prediletos.Nunca o cinema foi levado tão a sério.

   Na França, existe um marco político para que o cinema seja levado a sério: 1953, ano de implantação da Taxa Especial Adicional, que financiava a produção com parte da verba arrecadada nas bilheterias. Em 1958, na gestão do escritor André Malraux no Ministério da Cultura, o sistema foi incrementado com a antecipação do financiamento por meio de empréstimos, fundos e subvenções. Malraux havia decretado o cinema como atividade de interesse comercial; para os cinéfilos formados por Langlois, era religião. Havia até uma “bíblia” para a qual muitos escreveram, a Cahiers du Cinéma.

   Nas bancas desde abril de 1951, a revista da capa amarela não era a única publicação do gênero à disposição dos leitores parisienses. Tratava-se da mais mítica. A começar pelos fundadores. André Bazin e Jacques Doniol-Valcroze foram críticos atentos às mudanças na relação do filme (e seus elementos) com o espectador — um dos pontos de ruptura da produção do pós-Segunda Guerra com a anterior. Bazin, em especial, tornou-se guru ao teorizar sobre o espaço cinematográfico e sobre uma arte que só atingiria sua plenitude sendo “a arte do real”. Bazin dizia que a matéria-prima do cinema “não é a realidade em si, mas o desenho deixado pela realidade no celuloide”. Essa foi a brecha para que a nova geração de críticos franceses refletisse sobre aqueles que imprimiam a realidade em seus filmes de forma pessoal — como um escritor o faz no romance ou o compositor na música. Era o que se chamava na redação da Cahiers de “política dos autores”.



   Antes ignorados pela intelectualidade ou reduzidos a empregados de estúdio, diretores do porte de Howard Hawks e Alfred Hitchcock foram subitamente promovidos à condição de “autor”. Encontrar indícios de inteligência artística em produtos para as massas resultou na chave que revolucionaria a crítica cinematográfica não só na França como em todo o mundo.

   Na primeira leva de jovens críticos da revista estavam Pierre Kast e Alexandre Astruc. Este último levantava a necessidade de renovação da mentalidade no cinema francês desde março de 1948, quando publicou, no L´Écran Français, o inspiradíssimo Naissance d’une nouvelle avant-garde: la caméra-stylo (“nascimento de uma vanguarda: a câmera-caneta”). Em 1953, Bazin abriu as portas do espaçoso escritório de 20 m² na Champs-Elysées, número 146, para François Truffaut, 21 anos.

   “Filho único e não desejado”, Truffaut não conheceu o pai. Após romper com a mãe, passou por uma instituição para menores e abandonou o serviço militar em 1951. Livrou-se da delinquência quando Bazin o acolheu em casa e na Cahiers. Na condição de líder da nova geração, levou para a revista Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Éric Rohmer e Claude Chabrol. Eles se prepararam na crítica para detonar uma revolução em 1958. Esse seria o núcleo central da Nouvelle Vague.




Os Incompreendidos

   No início dos anos 40, Hollywood assistia à profusão de filmes noir — de inspiração expressionista e orçamento apertado, eles se revelavam bastante sofisticados tanto na forma quanto na proposta. Já os italianos reviravam os escombros para esboçar uma reação ao trauma da guerra, com o Neorrealismo. As duas correntes tinham em comum a capacidade de impor sua visão numa situação adversa. Foi o que a crítica francesa percebeu, no verão de 1946, tão logo teve acesso a dezenas de títulos que haviam sido impedidos ou banidos a partir da invasão alemã.

   Truffaut era garoto durante a Ocupação (vê post sobre o livro Com A Morte Na Alma), tempo em que viveu enfurnado nos mais de 20 cinemas existentes entre a Praça Clichy e a rua Rochechouart. Ele estava acostumado ao virtuosismo oco de Claude Autant-Lara, Jean Delannoy e Jean Grémillon. Desconhecia, assim como os demais espectadores, o gênio de Orson Welles e Roberto Rossellini. O panorama mudou muito no período em que a França esteve desconectada do mundo. E o fim da censura deixou em evidência uma defasagem histórica e estética da produção francesa.

   Enquanto isso, com artigos sutis, ora na Les Temps Modernes (cria de Jean-Paul Sartre), ora na Gazette du Cinéma e na Arts, Rohmer foi pioneiro em destacar a importância não só de Rossellini, mas também do conterrâneo Jean Renoir e do hollywoodiano Howard Hawks. Tornou-se redator-chefe da Cahiers em 1957, ano em que lançou, com Chabrol, livro sobre Alfred Hitchcock. O inglês era unanimidade entre os críticos da nova geração, que identificaram nele o gênio infiltrado no sistema dos grandes estúdios. O perfil também servia para o alemão (de origem austríaca) Fritz Lang. “Ele é capaz de causar complexos num cineasta com o mais insignificante dos planos”, Chabrol disse uma vez. Godard adorou todos os citados e mais alguns — Carl Dreyer, Nicholas Ray, Samuel Fuller, Ingmar Bergman.




   Em 1949, os “jovens turcos” se conheceram em meio ao Festival de Cinema Maldito de Biarritz.A futura crítica foi esboçada em noitadas regadas a filmes e discussões.Numa entrevista em 1962, Godard afirmou: “Escrever era uma forma de fazer cinema. Afinal, entre escrever e filmar há uma diferença quantitativa e não qualitativa”.Eles faziam crítica com interesses próprios, no entanto. Rohmer admitiria em 1983: “Nós incitávamos o público a amar o gênero que desejávamos fazer e demolíamos aqueles que eram admirados”.A nova geração sofria para se inserir no mercado por causa do controle suspeito dos sindicatos. Para abrir caminho, decidiu minar cineastas estabelecidos. O golpe mais brutal foi desferido por Truffaut na Cahiers du Cinéma, em janeiro de 1954.

   Truffaut trabalhava desde 1952 em uma reflexão a propósito dos filmes que vira durante a Ocupação. Estrategicamente, voltou ao passado para identificar as origens e a derrocada da “tradição de qualidade” do cinema francês. Ele investia contra a persistência de alguns roteiristas consagrados num realismo psicológico envelhecido e abjeto. Este era o ponto terminante do argumento: os roteiristas ditavam o teor da produção, restava ao diretor ser um burocrata, o “cavalheiro que estabelece os enquadramentos”.

   De tão raivoso, o artigo foi reescrito diversas vezes a pedido de Bazin e Doniol-Valcroze ao longo de 1953. A dupla esperava que Truffaut amadurecesse seus conceitos. Quando finalmente veio à tona (com o malicioso título Uma certa tendência do cinema francês), o texto abalou a indústria ao dar nome aos roteiristas nefastos e aos diretores-burocratas. O crítico ainda encontrou espaço para celebrar os cineastas que subvertiam esta tradição ao adotarem uma perspectiva particular em seus filmes: Jean Renoir, Robert Bresson, Jean Cocteau, Jacques Becker, Abel Gance, Max Ophuls, Jacques Tati e Roger Leenhardt.








La Nouvelle Vague

   Françoise Giroud criou o termo em outubro de 1957, em texto para a revista L´Express sobre a juventude do pós-guerra. Pierre Billard o resgatou em artigo para a revista Cinéma 58, em fevereiro de 1958. O crítico constatou que a cena francesa estava prestes a presenciar a maior onda de renovação de sua história. A previsão foi acertada. Beneficiados por fatores diversos, inclusive o desgaste da geração anterior, 170 diretores estrearam em longa-metragem entre 1958 e 1962.

   Ainda em 1954, uma fotógrafa belga contaria com o apoio logístico e financeiro de amigos para dirigir La Pointe Courte. Diferente de tudo que se fazia na França àquela altura, o primeiro filme de Agnès Varda fez dela referência na vanguarda parisiense, que girava em torno de Alain Resnais e Chris Marker. Além de abordar questões políticas ao situar sua história numa vila de pescadores, Varda lidava com as questões do cotidiano a partir de um casal em crise. De modo a romper com o dito “cinema de qualidade”, era imprescindível ter isso: o despeito de filmar o que os figurões não filmavam. Essa deixou de ser uma atitude de vanguarda e virou receita de sucesso em 1956, com o primeiro e ensolarado trabalho de Roger Vadim na direção: E Deus Criou a Mulher.

   Não bastasse ter revelado Brigitte Bardot, então mulher de Vadim, o filme deu uma lufada de ar juvenil ao arrastado sistema francês de estúdios. Com a sensualidade pulsante, ele terminou de asfaltar o caminho para uma juventude ansiosa por oportunidades. Os “jovens turcos” se arriscavam em curtas marcados pelo desprendimento moral e pelo frescor narrativo. Os Pivetes (Truffaut, 1957) e Charlotte et Véronique (Godard, 1959), por exemplo.

   O primeiro crítico da Cahiers du Cinéma a rodar um longa foi Pierre Kast, mas Un Amour de Poche não obteve sucesso, em 1957, com a mescla de comédia e ficção-científica. Éric Rohmer focalizou a juventude em O Signo de Leão. E esperou três anos para finalizá-lo. Quando foi apresentado, em 1962, já haviam passado pelas salas as obras emblemáticas de uma era efervescente.

   Ainda em 1958, aos 26 anos, o experiente assistente de direção Louis Malle mostrou suas credenciais de diretor com Ascensor para o Cadafalso, noir tardio abrilhantado pela trilha de Miles Davis, ao qual se seguiu Os Amantes. Pioneiro ao registrar o orgasmo feminino em filme, Malle iniciou uma trajetória de escândalos com esse drama. Já em 1959, outros dois longas endossaram a vocação para polêmicas da tal Nouvelle Vague. Presentes no Festival de Cannes, Hiroshima Meu Amor e Os Incompreendidos introduziram multidões ao talento de Alain Resnais e François Truffaut, respectivamente.

   A seleção dos dois filmes encheu de entusiasmo a todos os defensores do novo cinema.Godard desabafou em Arts: “Hoje a vitória é nossa.Nossos filmes é que irão a Cannes provar que a França tem um belo rosto, cinematograficamente falando.E no próximo ano será o mesmo. (...) Pois se vencemos uma batalha, a guerra não terminou”.O recado foi direcionado aos representantes da “qualidade francesa”, que no ano anterior impediram o credenciamento de Truffaut como jornalista em Cannes.

   O enfant terrible da crítica francesa voltou ao prestigiado festival com traje de gala e bolso recheado: antes da estréia, Os Incompreendidos foi adquirido por uma distribuidora norte-americana por 47 milhões de francos (ou 50 mil dólares). 

   Era o custo da produção. Baixo para os padrões, ele foi bancado por completo pelo sogro, o renomado distribuidor Ignace Morgenstern. A projeção triunfal, a 4 de maio, culminaria em elogios rasgados da crítica, no prêmio de melhor diretor e em outros 40 milhões de francos em direitos vendidos para o mercado internacional. Truffaut dedicou tudo ao mentor André Bazin, que morreu no dia em que se iniciaram as filmagens: 11 de novembro de 1958.


   Os Incompreendidos foi o primeiro sucesso da Nouvelle Vague, o que transformou tanto o movimento quanto seu líder em fenômenos de mídia. Ainda no calor de Cannes, a grande imprensa não se furtava em publicar perfis e reportagens sobre Truffaut, bem como sobre o ator-revelação Jean- Pierre Léaud, 15 anos. Nunca um cineasta havia merecido tanta atenção de veículos como Paris-Match, Le Monde e France-Observateur. O cineasta em questão era estreante e tinha 27 anos.


   Com a estréia em duas salas na Champs-Elysées, a 3 de junho, os jornalistas focaram a temática explosiva: um garoto chamado Antoine Doinel sofre as consequências de ter pai ausente, mãe adúltera e professores cruéis. 
   O burburinho causou efeito imediato na receita do projeto: 450 mil espectadores somente em Paris. E mexeu com os brios do padrasto e da mãe de Truffaut. O casal descobriu assim que François fizera um acerto de contas com o passado. Janine e Roland Truffaut enviaram cartas agressivas ao filho, que se recusou a lê-las e a receber a família.O fato repercutiu na imprensa. Parte dela adotava expressões como arrivista,cínico, hipócrita e dissimulado quando se referia ao cineasta;outros viam nele o referencial de uma escola afinada com os temas da contemporaneidade e que esbanjava agilidade, talento e charme próprio.

   Logo após o burburinho de 1959, houve uma serie de críticas negativas e a imprensa muitas vezes apelava em sua difamação do que era proposto. A idéia que incomodou os veteranos — de fazer mais com menos dinheiro — seduziu os jovens que procuravam um meio de expressar sua criatividade e suas vontades. Um filme em particular simbolizou isso. Se o cinema mudou com a Nouvelle Vague, muito se deve a Acossado. Com a montagem insubmissa a padrões, personagens sedutores e a câmera insinuante, o cartão de visitas de Jean-Luc Godard chegou ao circuito em março de 1960. Depois de fazer mais de 300 mil espectadores na França, espalhou sua influência pelo mundo. Nos EUA, inspirou uma geração de estudantes (entre eles Martin Scorsese e Francis Ford Coppola) a salvar Hollywood de uma crise de credibilidade aguda. Despojado de ponta a ponta, o filme desencadeou esse processo ao delinear com clareza a fronteira entre um modelo de produção ultrapassado e o modelo a ser seguido.



    Aspirantes a diretor na França sempre foram vistos com desconfiança pelos investidores; depois do êxito de Os Incompreendidos, “todos” queriam ter um filme da Nouvelle Vague. O interesse repentino estalou o modismo em 1960. O movimento não pertencia mais aos “jovens turcos”. De tão abrangente, adequava-se ora às comédias de Philippe de Broca (Les Jeux de l’Amour), ora às experiências formalistas de Marcel Hanoun (Le Huitième Jour). No balanço final daquela temporada, foram revelados 43 diretores.

   Truffaut aproveitou o momento para emplacar outro filme (Atirem no Pianista) e ajudar o amigo Godard, presenteando-o com uma sinopse de quatro páginas. Com a assinatura de Truffaut e a confirmação de Chabrol como consultor técnico, De Beauregard convenceu o produtor Gérard Beytout e o distribuidor René Pignières a cobrirem o modesto orçamento de Acossado (50 mil dólares). Mais que modesto, já que 25% do valor seria destinado a Jean Seberg, atriz importada dos EUA para contracenar com Jean-Paul Belmondo. O diretor estava pronto para seguir a cartilha do cinema de gênero — paradoxalmente, filmes de gênero eram motivo de veneração entre os críticos da Cahiers. Só há dois temas nos filmes de Jean-Luc: a morte e a impossibilidade do amor. Nada mais clássico do que isso. A revolução de Godard se daria pela forma.



   Acossado foi um passo importante para a popularização do videoclipe, décadas depois. E não apenas pelo ritmo frenético. Entre os atributos mais exaltados da obra (e estes seriam uma constante na trajetória godardiana), constam os sobressaltos de tempo e espaço, em que os cortes abruptos realçam a flexibilidade da linguagem audiovisual. Com a mesma postura desafiadora demonstrada nos quesitos técnicos, Godard inseriu os atores num modelo de interpretação que fuzila as premissas de evolução da personagem, de causa e efeito. Eles “estão” em cena, e não interpretam uma cena. A câmera participa desse jogo como mais uma personagem. Ela chega a “incorporar” por quase meia-hora a curiosidade do público na sequencia em que Belmondo se esforça em seduzir Seberg no quarto do Hôtel de Suède. Todos aguardavam o desfecho dessa história fascinante.





Cinema!

   Filme após filme, a Nouvelle Vague passou a apresentar um desgaste interno. Cada diretor da primeira geração seguiu um caminho, com seus novos trabalhos distanciando-se daquela motivação comum, não cabendo mais colocá- los em uma mesma perspectiva. Ao mesmo tempo, distribuidores e produtores perceberam que o burburinho em torno da corrente não era garantia de retorno de bilheteria. A separação do núcleo inicial e o pouco sucesso comercial contribuíram para o fim do movimento.

   Diz-se que a Nouvelle Vague chegou ao fim em dezembro de 1962, quando a Cahiers du Cinéma fez um balanço a partir de entrevistas extensas com Truffaut, Chabrol e Godard. A seu modo, cada um substituiu o entusiasmo de outrora por comedimento. Ou pela desconfiança, eventualmente. Havia uma razão para isso: em cinco anos, a geração conduzida pelos três emplacou um ou outro sucesso e colecionou fiascos de bilheteria e polêmicas desgastantes.

   A vitória de Henri Colpi em Cannes (Une Aussi Longue Absence) e a de Alain Resnais em Veneza (Ano Passado em Marienbad), ambas em 1961, não aplacaram os fracassos que se sucediam e incomodavam a todos. Truffaut sentiu o baque com Atirem no Pianista, no ano anterior. Godard sofreu dois em questão de meses: o prejuízo de Uma Mulher é uma Mulher e a interdição de O Pequeno Soldado, primeiro filme da Nouvelle Vague a abordar a guerra pela independência da Argélia. Chabrol seguia a atividade incessante, apesar de não empolgar com À Double Tour (1959), Mulheres Fáceis (1960) e Les Godelureaux (1961).

   Num bilhete entregue a Truffaut, Godard demonstrava frustração com a desintegração da Nouvelle Vague na própria base. “Não nos vemos mais, isso é absurdo”, ele comentou. “Ontem fui ver Claude (Chabrol) filmar, é terrível, não temos mais nada a nos dizer. Cada qual tomou o rumo de seu próprio planeta, não nos vemos mais em primeiro plano, como antes, só em plano geral. As garotas com quem dormimos nos separam cada dia mais, em vez de nos aproximarem. Não é normal.”

   Em março de 1961, quando Jean-Luc Godard se casou com a atriz revelada por ele em O Pequeno Soldado e Uma Mulher é uma Mulher, a dinamarquesa Anna Karina, a revista Paris-Match estampou o título na capa: “O casamento da Nouvelle Vague”. Em menos de um ano, o tom das manchetes deixou de ser festivo. O jornal L’Aurore destacou, na edição de 2 de fevereiro de 1962, o que ficou conhecido como “o processo da Nouvelle Vague”, em referência a uma disputa judicial entre François Truffaut e Roger Vadim que expôs as diferenças existentes no movimento.

   O caso remete a Torneio de Amor, comédia estrelada por Brigitte Bardot que marcaria a estréia na direção de longas de Jean Aurel, o roteirista. Foi em dezembro de 1960. Depois de três dias de filmagens, Bardot solicitou aos produtores a contratação de Roger Vadim para supervisionar o set. Em apenas uma semana, Vadim tomou para si o filme e Aurel pediu demissão. Truffaut partiu em defesa do amigo e deu o troco. Em artigo furioso na France-Observateur, o cineasta retomou o espírito combativo para agredir Vadim e exaltar a “moral do autor”. Vadim respondeu ao processá-lo por difamação.

   As razões do ataque extrapolavam a amizade com Aurel. Truffaut estava preocupado com a queda de credibilidade da Nouvelle Vague e temia que isso se refletisse no rendimento de seu terceiro filme como diretor, Jules e Jim. Baseada em romance de Henri-Pierre Roché, a história de amor de dois homens com uma mulher foi tratada com dureza pela censura, que proibiu o filme para menores de 18 anos. Sendo assim, Truffaut recebeu a intimação da Justiça num momento que considerava decisivo para o seu futuro.



   Um fato cômico, diga-se de passagem,o processo ecoou na imprensa, que observava com atenção o embate de Vadim (com o apoio de Bardot e de Louis Malle) contra Truffaut, acompanhado em sua causa por Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Jean-Pierre Melville, Claude Chabrol, Claude Sautet, Philippe de Broca e Pierre Kast. Responsável pela confusão, Bardot chegou a chorar no tribunal. E Godard foi expulso após perturbar a ordem. Considerado culpado depois de tudo, o réu foi obrigado a indenizar Vadim com UM FRANCO!!!!!!!!!!!.

   A Nouvelle Vague se diluiu assim que os ideais de coletividade esmoreceram e os pilares daquela geração perderam o elo com a juventude que chegaram a representar. Truffaut e Chabrol se renderam a um estilo clássico e conformado, o mesmo que eles condenaram nos anos 1950. Imbuído de um pessimismo peculiar desde Viver a Vida (1962), Godard investiu numa proposta que Jeancolas definiu como “experimental, provocante, inventiva e irritante”. Nos créditos finais de Weekend à Francesa (1967), ele radicalizou: “Fim da história, fim do cinema”.






Os Sonhadores

   Os anos da Nouvelle Vague foram os anos de Charles de Gaulle à frente da França. Líder das forças de resistência ao invasor nazista e chefe do governo transitório entre 1944 e 1946, o general voltou ao poder em 1958 e lá permaneceu por onze anos. O homem-forte da Vª República interferiu diretamente na produção audiovisual francesa com um controle implacável do conteúdo de filmes e programas de televisão. Até que ele perguntou a um assessor, bastante preocupado: “Quem é esse Henri Langlois?” Por semanas, o fundador da Cinemateca tirou o sono do alto escalão do governo francês.



   A agitação começou em fevereiro de 1968. Milhares de estudantes foram às ruas de Paris para protestar contra a decisão insólita do Ministério da Cultura, que destituíra o diretor da Cinemateca (e pai da mesma) por incompetência administrativa. Tratava-se de um golpe do ministro André Malraux para implantar, no comando da instituição, alguém manipulável, o qual foi prontamente repudiado — e não apenas por estudantes. 


   Numa mobilização sem precedentes, os principais cineastas do período organizaram uma manifestação diante do Palácio de Chaillot, onde ocorriam as sessões desde 1965. Há anos separados por razões pessoais diversas, os companheiros de Nouvelle Vague se reencontraram para gritar “Viva Langlois!” Estavam acompanhados da nova geração, de onde despontavam nomes como Jean Eustache, Philippe Garrel (sim, o pai do nosso amado Louis) e Bertrand Tavernier. O melhor do cinema francês estava unido em torno de uma causa, novamente.


                            



O mentor de tudo foi Truffaut, que interrompeu as filmagens de Beijos Proibidos (dedicado a Langlois) e ordenou seus empregados na Films Du Carrosse a chamar a atenção do mundo para o escândalo da Cinemateca.


   Em dois dias, o escritório recebeu centenas de mensagens de incentivo, firmadas por cineastas como: Charles Chaplin, Fritz Lang, Josef von Sternberg, Carl Dreyer, Orson Welles, Roberto Rossellini, Jean Renoir, Jacques Tati, Robert Bresson e Akira Kurosawa.

   Reforçados pelo apoio de grande parte da imprensa francesa, três mil pessoas colocaram em cheque o gaullismo naquela noite fria de 14 de fevereiro. O descaso com o passado de Langlois seria utilizado como prova de acusação. Numa ofensiva desmedida, porém, a polícia reprimiu o protesto com homens armados e cerca de 30 viaturas. Entre os feridos estavam Godard e Truffaut. Tudo foi exibido nos dias seguintes pelos telejornais. A adesão popular aos manifestantes crescia; os fatos eram documentados sem trégua também pela imprensa internacional; profissionais de renome faziam críticas duras a Malraux, dia após dia, em entrevistas coletivas disputadas. Tudo isso por causa de um sujeito desengonçado e de sorriso terno. Renoir se emocionou numa coletiva ao falar de Langlois, o “homem capaz de unir os fazedores de filmes de boa vontade”.

                     

   Langlois foi readmitido no dia 22 de abril. Quando a sala da rua Ulm foi reaberta, a 2 de maio, a juventude francesa já estava engajada em outra luta, agora em repúdio à política educacional conservadora do gaullismo. O descontentamento não era exclusividade dos estudantes, no entanto. Trabalhadores de toda a França entraram numa greve que parou o país por um mês. Inclusive o cinema. Dez anos depois da eclosão da Nouvelle Vague, chegara a hora de levantar a voz novamente. Era maio de 1968. Em razão dos piquetes, das barricadas e do confronto com as forças oficiais, os diretores — revelados oito a dez anos antes — recuperaram a garra de alterar o estado das coisas. Em um gesto espontâneo e coletivo, paralisaram o Festival de Cannes à força e interromperam as filmagens. Eles desencadearam isso, por Langlois. Picuinhas à parte, o cinema fez a diferença.


Com amor,
O Austero

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