Quero continuar aquela história que comecei no outro dia mas fui impedida de continuar por contra-tempos, peço que me perdoa, e prometo-lhe ser rica em detalhes dessa vez. Ou pelo menos, direi o que eu sei, pois não cabe a mim alterar os fatos, ou mesmo inventa-los. Se tiveres curiosidade, depois lhe indico as fontes que utilizei para contar-lhe essa historia.São inúmeros filmes e documentários, que me fazem desejar ter vivido em outra época, uma que eu diria ser, deveras, de ouro. E eu espero que goste de minha historia, pois ela também é minha, e também será sua, assim que você começar a lê-la.
Une Histoire D'eau
Jacques
Franju não foi cineasta. Nem roteirista. Nem produto. Nem ator. Mas não
menosprezemos esse nome, pois ele teve um papel deveras importante na historia
que vou contar.
Nos
idos de 1934, ele apresentou o irmão a um colega da de trabalho. Tal qual
Georges Franju, Henri Langlois era um jovem apaixonado pela sétima arte. Da amizade
instantânea entre dois apaixonados, duas sólidas instituições francesas
surgiriam: primeiro a Cinemateca, depois a cinefilia.
Langlois
conheceu o cinema quando este ainda era mudo. Na adolescência em Paris, ele
desfrutou ao máximo as atrações de uma cidade que reconhecia os filmes como
obras de arte desde a década de 1910. Dois anos mais velho que ele e com
experiência em teatro, Georges Franju sonhava em se tornar cineasta. O objetivo
de Langlois não era conhecer estrelas ou dirigi-las. Era preservar uma época
que começava a se perder.
Com
o advento do cinema sonoro, no final da década de 1920, produtores e
distribuidores em todo o mundo se livravam das cópias sem som, com a intenção
de extrair a prata que compunha a película cinematográfica. Langlois salvou
preciosidades do período mudo por conta própria, armazenando-as na banheira de
casa por alguns meses. Onde os demais enxergavam dinheiro, este homem viu um
patrimônio. E tratou de organizá-lo de modo a garantir o acesso do público.
Já
com 150 cópias adquiridas pessoalmente, Langlois fundou a Cinemateca Francesa
em 9 de setembro de 1936.O sócio desse sonho era Georges Franju, que dias
antes comprara um galpão abandonado nos arredores de Paris.O acervo tem sido
exibido regularmente ao público desde 1955, quando a Cinemateca se impôs com
uma programação que não fazia distinção entre clássicos absolutos e fitas
obscuras.As sessões na rua Ulm atraíram jovens como Jean-Luc Godard, oriundo
de uma estável família burguesa fincada na Suíça.Também eram assíduos o
aspirante a delinquente François Truffaut e o professor de francês e literatura
Jean-Marie Maurice Schérer (vulgo Éric Rohmer),entre outros cinéfilos que se
rendiam em devoção a seus filmes e diretores prediletos.Nunca o cinema foi
levado tão a sério.
Na
França, existe um marco político para que o cinema seja levado a sério: 1953,
ano de implantação da Taxa Especial
Adicional, que financiava a produção com parte da verba arrecadada nas
bilheterias. Em 1958, na gestão do escritor André Malraux no Ministério da
Cultura, o sistema foi incrementado com a antecipação do financiamento por meio
de empréstimos, fundos e subvenções. Malraux havia decretado o cinema como
atividade de interesse comercial; para os cinéfilos formados por Langlois, era
religião. Havia até uma “bíblia” para a qual muitos escreveram, a Cahiers du Cinéma.
Nas
bancas desde abril de 1951, a revista da capa amarela não era a única
publicação do gênero à disposição dos leitores parisienses. Tratava-se da mais
mítica. A começar pelos fundadores. André Bazin e Jacques Doniol-Valcroze foram
críticos atentos às mudanças na relação do filme (e seus elementos) com o
espectador — um dos pontos de ruptura da produção do pós-Segunda Guerra com a
anterior. Bazin, em especial, tornou-se guru ao teorizar sobre o espaço
cinematográfico e sobre uma arte que só atingiria sua plenitude sendo “a arte
do real”. Bazin dizia que a matéria-prima do cinema “não é a realidade em si, mas o desenho deixado pela realidade no celuloide”.
Essa foi a brecha para que a nova geração de críticos franceses refletisse
sobre aqueles que imprimiam a realidade em seus filmes de forma pessoal — como
um escritor o faz no romance ou o compositor na música. Era o que se chamava na
redação da Cahiers de “política dos autores”.
Antes
ignorados pela intelectualidade ou reduzidos a empregados de estúdio, diretores
do porte de Howard Hawks e Alfred Hitchcock foram subitamente promovidos à
condição de “autor”. Encontrar indícios de inteligência artística em produtos
para as massas resultou na chave que revolucionaria a crítica cinematográfica
não só na França como em todo o mundo.
Na
primeira leva de jovens críticos da revista estavam Pierre Kast e Alexandre
Astruc. Este último levantava a necessidade de renovação da mentalidade no
cinema francês desde março de 1948, quando publicou, no L´Écran Français, o
inspiradíssimo Naissance d’une nouvelle avant-garde:
la caméra-stylo (“nascimento de uma vanguarda: a
câmera-caneta”). Em 1953, Bazin abriu as portas do espaçoso escritório de 20 m²
na Champs-Elysées, número 146, para François Truffaut, 21 anos.
“Filho
único e não desejado”, Truffaut não conheceu o pai. Após romper com a mãe,
passou por uma instituição para menores e abandonou o serviço militar em 1951.
Livrou-se da delinquência quando Bazin o acolheu em casa e na Cahiers. Na condição de líder da nova geração, levou para a
revista Jean-Luc Godard, Jacques Rivette, Éric Rohmer e Claude Chabrol. Eles se
prepararam na crítica para detonar uma revolução em 1958. Esse seria o núcleo
central da Nouvelle Vague.
Os Incompreendidos
No
início dos anos 40, Hollywood assistia à profusão de filmes noir — de inspiração
expressionista e orçamento apertado, eles se revelavam bastante sofisticados
tanto na forma quanto na proposta. Já os italianos reviravam os escombros para
esboçar uma reação ao trauma da guerra, com o Neorrealismo. As duas correntes
tinham em comum a capacidade de impor sua visão numa situação adversa. Foi o
que a crítica francesa percebeu, no verão de 1946, tão logo teve acesso a
dezenas de títulos que haviam sido impedidos ou banidos a partir da invasão
alemã.
Truffaut
era garoto durante a Ocupação (vê post sobre o livro Com A Morte Na Alma),
tempo em que viveu enfurnado nos mais de 20 cinemas existentes entre a Praça
Clichy e a rua Rochechouart. Ele estava acostumado ao virtuosismo oco de Claude
Autant-Lara, Jean Delannoy e Jean Grémillon. Desconhecia, assim como os demais
espectadores, o gênio de Orson Welles e Roberto Rossellini. O panorama mudou
muito no período em que a França esteve desconectada do mundo. E o fim da
censura deixou em evidência uma defasagem histórica e estética da produção
francesa.
Enquanto
isso, com artigos sutis, ora na Les
Temps Modernes (cria de Jean-Paul Sartre), ora na Gazette
du Cinéma e na Arts, Rohmer foi
pioneiro em destacar a importância não só de Rossellini, mas também do
conterrâneo Jean Renoir e do hollywoodiano Howard Hawks. Tornou-se
redator-chefe da Cahiers em 1957, ano em que lançou, com Chabrol, livro sobre
Alfred Hitchcock. O inglês era unanimidade entre os críticos da nova geração,
que identificaram nele o gênio infiltrado no sistema dos grandes estúdios. O
perfil também servia para o alemão (de origem austríaca) Fritz
Lang. “Ele é capaz de causar complexos num cineasta com o mais insignificante
dos planos”, Chabrol disse uma vez. Godard adorou todos os citados e mais
alguns — Carl Dreyer, Nicholas Ray, Samuel Fuller, Ingmar Bergman.
Em
1949, os “jovens turcos” se conheceram em meio ao Festival de Cinema Maldito de
Biarritz.A futura crítica foi esboçada em noitadas regadas a filmes e
discussões.Numa entrevista em 1962, Godard afirmou: “Escrever era uma forma de fazer cinema. Afinal, entre escrever e filmar
há uma diferença quantitativa e não qualitativa”.Eles faziam crítica com
interesses próprios, no entanto. Rohmer admitiria em 1983: “Nós incitávamos o público a amar o gênero
que desejávamos fazer e demolíamos aqueles que eram admirados”.A nova
geração sofria para se inserir no mercado por causa do controle suspeito dos
sindicatos. Para abrir caminho, decidiu minar cineastas estabelecidos. O golpe
mais brutal foi desferido por Truffaut na Cahiers
du Cinéma, em janeiro de 1954.
Truffaut
trabalhava desde 1952 em uma reflexão a propósito dos filmes que vira durante a
Ocupação. Estrategicamente, voltou ao passado para identificar as origens e a
derrocada da “tradição de qualidade” do cinema francês. Ele investia contra a
persistência de alguns roteiristas consagrados num realismo psicológico
envelhecido e abjeto. Este era o ponto terminante do argumento: os roteiristas
ditavam o teor da produção, restava ao diretor ser um burocrata, o “cavalheiro
que estabelece os enquadramentos”.
De
tão raivoso, o artigo foi reescrito diversas vezes a pedido de Bazin e
Doniol-Valcroze ao longo de 1953. A dupla esperava que Truffaut amadurecesse
seus conceitos. Quando finalmente veio à tona (com o malicioso título Uma certa tendência do cinema francês), o texto abalou a indústria ao dar nome aos roteiristas
nefastos e aos diretores-burocratas. O crítico ainda encontrou espaço para
celebrar os cineastas que subvertiam esta tradição ao adotarem uma perspectiva
particular em seus filmes: Jean Renoir, Robert Bresson, Jean Cocteau, Jacques Becker,
Abel Gance, Max Ophuls, Jacques Tati e Roger Leenhardt.
La
Nouvelle Vague
Françoise Giroud criou o termo em outubro de 1957, em texto para a revista L´Express sobre a juventude do pós-guerra. Pierre Billard o resgatou em artigo para a revista Cinéma 58, em fevereiro de 1958. O crítico constatou que a cena francesa estava prestes a presenciar a maior onda de renovação de sua história. A previsão foi acertada. Beneficiados por fatores diversos, inclusive o desgaste da geração anterior, 170 diretores estrearam em longa-metragem entre 1958 e 1962.
Françoise Giroud criou o termo em outubro de 1957, em texto para a revista L´Express sobre a juventude do pós-guerra. Pierre Billard o resgatou em artigo para a revista Cinéma 58, em fevereiro de 1958. O crítico constatou que a cena francesa estava prestes a presenciar a maior onda de renovação de sua história. A previsão foi acertada. Beneficiados por fatores diversos, inclusive o desgaste da geração anterior, 170 diretores estrearam em longa-metragem entre 1958 e 1962.
Ainda
em 1954, uma fotógrafa belga contaria com o apoio logístico e financeiro de
amigos para dirigir La Pointe Courte. Diferente de tudo que se fazia na França àquela altura,
o primeiro filme de Agnès Varda fez dela referência na vanguarda parisiense,
que girava em torno de Alain Resnais e Chris Marker. Além de abordar questões
políticas ao situar sua história numa vila de pescadores, Varda lidava com as
questões do cotidiano a partir de um casal em crise. De modo a romper com o
dito “cinema de qualidade”, era imprescindível ter isso: o despeito de filmar o
que os figurões não filmavam. Essa deixou de ser uma atitude de vanguarda e
virou receita de sucesso em 1956, com o primeiro e ensolarado trabalho de Roger
Vadim na direção: E Deus Criou a Mulher.
Não
bastasse ter revelado Brigitte Bardot, então mulher de Vadim, o filme deu uma
lufada de ar juvenil ao arrastado sistema francês de estúdios. Com a
sensualidade pulsante, ele terminou de asfaltar o caminho para uma juventude
ansiosa por oportunidades. Os “jovens turcos” se arriscavam em curtas marcados
pelo desprendimento moral e pelo frescor narrativo. Os Pivetes (Truffaut, 1957) e Charlotte
et Véronique (Godard, 1959), por exemplo.
O
primeiro crítico da Cahiers du Cinéma a rodar um longa foi Pierre Kast, mas Un Amour de Poche não obteve sucesso, em 1957, com a mescla de comédia e
ficção-científica. Éric Rohmer focalizou a juventude em O Signo de Leão. E esperou três anos para finalizá-lo. Quando foi
apresentado, em 1962, já haviam passado pelas salas as obras emblemáticas de
uma era efervescente.
Ainda
em 1958, aos 26 anos, o experiente assistente de direção Louis Malle mostrou
suas credenciais de diretor com Ascensor
para o Cadafalso, noir tardio abrilhantado pela trilha de Miles Davis, ao qual
se seguiu Os Amantes. Pioneiro ao registrar o orgasmo feminino em filme, Malle
iniciou uma trajetória de escândalos com esse drama. Já em 1959, outros dois
longas endossaram a vocação para polêmicas da tal Nouvelle Vague. Presentes no
Festival de Cannes, Hiroshima Meu Amor e Os
Incompreendidos introduziram multidões ao talento de
Alain Resnais e François Truffaut, respectivamente.
A
seleção dos dois filmes encheu de entusiasmo a todos os defensores do novo
cinema.Godard desabafou em Arts: “Hoje a vitória é
nossa.Nossos filmes é que irão a Cannes provar que a França tem um belo rosto,
cinematograficamente falando.E no próximo ano será o mesmo. (...) Pois se
vencemos uma batalha, a guerra não terminou”.O recado foi direcionado aos
representantes da “qualidade francesa”, que no ano anterior impediram o
credenciamento de Truffaut como jornalista em Cannes.
O
enfant terrible da crítica francesa voltou ao prestigiado festival com
traje de gala e bolso recheado: antes da estréia, Os Incompreendidos foi adquirido por uma distribuidora norte-americana por 47
milhões de francos (ou 50 mil dólares).
Era o custo da produção. Baixo para os
padrões, ele foi bancado por completo pelo sogro, o renomado distribuidor
Ignace Morgenstern. A
projeção triunfal, a 4 de maio, culminaria em elogios rasgados da crítica, no
prêmio de melhor diretor e em outros 40 milhões de francos em direitos vendidos
para o mercado internacional. Truffaut dedicou tudo ao mentor André Bazin, que
morreu no dia em que se iniciaram as filmagens: 11
de novembro de 1958.
Os Incompreendidos foi o primeiro sucesso da Nouvelle Vague, o que transformou tanto o movimento quanto seu líder em fenômenos de mídia. Ainda no calor de Cannes, a grande imprensa não se furtava em publicar perfis e reportagens sobre Truffaut, bem como sobre o ator-revelação Jean- Pierre Léaud, 15 anos. Nunca um cineasta havia merecido tanta atenção de veículos como Paris-Match, Le Monde e France-Observateur. O cineasta em questão era estreante e tinha 27 anos.
Com
a estréia em duas salas na Champs-Elysées, a 3 de junho, os jornalistas focaram
a temática explosiva: um garoto chamado Antoine Doinel sofre as consequências
de ter pai ausente, mãe adúltera e professores cruéis.
O burburinho causou
efeito imediato na receita do projeto: 450 mil espectadores somente em Paris. E
mexeu com os brios do padrasto e da mãe de Truffaut. O casal descobriu assim
que François fizera um acerto de contas com o passado. Janine e Roland Truffaut
enviaram cartas agressivas ao filho, que se recusou a lê-las e a receber a
família.O fato repercutiu na imprensa. Parte dela adotava expressões como
arrivista,cínico, hipócrita e dissimulado quando se referia ao cineasta;outros viam nele o referencial de uma escola afinada com os temas da
contemporaneidade e que esbanjava agilidade, talento e charme próprio.
Logo
após o burburinho de 1959, houve uma serie de críticas negativas e a imprensa
muitas vezes apelava em sua difamação do que era proposto. A idéia que
incomodou os veteranos — de fazer mais com menos dinheiro — seduziu os jovens
que procuravam um meio de expressar sua criatividade e suas vontades. Um filme
em particular simbolizou isso. Se o cinema mudou com a Nouvelle Vague, muito se
deve a Acossado. Com a montagem insubmissa a padrões, personagens
sedutores e a câmera insinuante, o cartão de visitas de Jean-Luc Godard chegou
ao circuito em março de 1960. Depois de fazer mais de 300 mil espectadores na
França, espalhou sua influência pelo mundo. Nos EUA, inspirou uma geração de
estudantes (entre eles Martin Scorsese e Francis Ford Coppola) a salvar
Hollywood de uma crise de credibilidade aguda. Despojado de ponta a ponta, o
filme desencadeou esse processo ao delinear com clareza a fronteira entre um
modelo de produção ultrapassado e o modelo a ser seguido.
Aspirantes
a diretor na França sempre foram vistos com desconfiança pelos investidores;
depois do êxito de Os Incompreendidos, “todos” queriam ter um filme da Nouvelle Vague. O
interesse repentino estalou o modismo em 1960. O movimento não pertencia mais
aos “jovens turcos”. De tão abrangente, adequava-se ora às comédias de Philippe
de Broca (Les Jeux de l’Amour), ora às experiências formalistas de Marcel Hanoun (Le Huitième Jour). No balanço final daquela temporada, foram revelados 43
diretores.
Truffaut
aproveitou o momento para emplacar outro filme (Atirem no Pianista) e ajudar o amigo Godard, presenteando-o com uma sinopse
de quatro páginas. Com a assinatura de Truffaut e a confirmação de Chabrol como
consultor técnico, De Beauregard convenceu o produtor Gérard Beytout
e o distribuidor René Pignières a cobrirem o modesto orçamento de Acossado (50
mil dólares). Mais que modesto, já que 25% do valor seria destinado a Jean
Seberg, atriz importada dos EUA para contracenar com Jean-Paul Belmondo. O
diretor estava pronto para seguir a cartilha do cinema de gênero —
paradoxalmente, filmes de gênero eram motivo de veneração entre os críticos da Cahiers. Só há dois
temas nos filmes de Jean-Luc: a morte e a impossibilidade do amor. Nada mais
clássico do que isso. A revolução de Godard se daria pela forma.
Acossado foi
um passo importante para a popularização do videoclipe, décadas depois. E não
apenas pelo ritmo frenético. Entre os atributos mais exaltados da obra (e estes
seriam uma constante na trajetória godardiana), constam os sobressaltos de tempo e espaço, em que os
cortes abruptos realçam a flexibilidade da linguagem audiovisual. Com a mesma
postura desafiadora demonstrada nos quesitos técnicos, Godard inseriu os atores
num modelo de interpretação que fuzila as premissas de evolução da personagem,
de causa e efeito. Eles “estão” em cena, e não interpretam uma cena. A câmera
participa desse jogo como mais uma personagem. Ela chega a “incorporar” por
quase meia-hora a curiosidade do público na sequencia em que Belmondo se
esforça em seduzir Seberg no quarto do Hôtel de Suède. Todos aguardavam o
desfecho dessa história fascinante.
Cinema!
Filme após filme, a Nouvelle Vague passou a apresentar um desgaste interno. Cada diretor da primeira geração seguiu um caminho, com seus novos trabalhos distanciando-se daquela motivação comum, não cabendo mais colocá- los em uma mesma perspectiva. Ao mesmo tempo, distribuidores e produtores perceberam que o burburinho em torno da corrente não era garantia de retorno de bilheteria. A separação do núcleo inicial e o pouco sucesso comercial contribuíram para o fim do movimento.
Filme após filme, a Nouvelle Vague passou a apresentar um desgaste interno. Cada diretor da primeira geração seguiu um caminho, com seus novos trabalhos distanciando-se daquela motivação comum, não cabendo mais colocá- los em uma mesma perspectiva. Ao mesmo tempo, distribuidores e produtores perceberam que o burburinho em torno da corrente não era garantia de retorno de bilheteria. A separação do núcleo inicial e o pouco sucesso comercial contribuíram para o fim do movimento.
Diz-se
que a Nouvelle Vague chegou ao fim em dezembro de 1962, quando a Cahiers du Cinéma fez
um balanço a partir de entrevistas extensas com Truffaut, Chabrol e Godard. A
seu modo, cada um substituiu o entusiasmo de outrora por comedimento. Ou pela
desconfiança, eventualmente. Havia uma razão para isso: em cinco anos, a
geração conduzida pelos três emplacou um ou outro sucesso e colecionou fiascos
de bilheteria e polêmicas desgastantes.
A
vitória de Henri Colpi em Cannes (Une
Aussi Longue Absence) e a de Alain
Resnais em Veneza (Ano Passado em Marienbad), ambas em 1961, não aplacaram os fracassos que se
sucediam e incomodavam a todos. Truffaut sentiu o baque com Atirem no Pianista, no ano anterior. Godard sofreu dois em questão de meses:
o prejuízo de Uma Mulher é uma Mulher e a interdição de O Pequeno Soldado, primeiro filme da Nouvelle Vague a abordar a guerra pela
independência da Argélia. Chabrol seguia a atividade incessante, apesar de não
empolgar com À Double Tour (1959), Mulheres
Fáceis (1960) e Les Godelureaux (1961).
Num
bilhete entregue a Truffaut, Godard demonstrava frustração com a desintegração
da Nouvelle Vague na própria base. “Não nos vemos mais, isso é absurdo”, ele
comentou. “Ontem fui ver Claude (Chabrol) filmar, é terrível, não temos mais
nada a nos dizer. Cada qual tomou o rumo de seu próprio planeta, não nos vemos
mais em primeiro plano, como antes, só em plano geral. As garotas com quem
dormimos nos separam cada dia mais, em vez de nos aproximarem. Não é normal.”
Em
março de 1961, quando Jean-Luc Godard se casou com a atriz revelada por ele em O Pequeno Soldado e Uma
Mulher é uma Mulher, a dinamarquesa
Anna Karina, a revista Paris-Match estampou o título na capa: “O casamento da Nouvelle
Vague”. Em menos de um ano, o tom das manchetes deixou de ser festivo. O jornal
L’Aurore destacou, na edição de 2 de fevereiro de 1962, o que ficou
conhecido como “o processo da Nouvelle Vague”, em referência a uma disputa
judicial entre François Truffaut e Roger Vadim que expôs as diferenças
existentes no movimento.
O
caso remete a Torneio de Amor, comédia estrelada por Brigitte Bardot que marcaria a
estréia na direção de longas de Jean Aurel, o roteirista. Foi em dezembro de
1960. Depois de três dias de filmagens, Bardot solicitou aos produtores a
contratação de Roger Vadim para supervisionar o set. Em apenas uma
semana, Vadim tomou para si o filme e Aurel pediu demissão. Truffaut partiu em
defesa do amigo e deu o troco. Em artigo furioso na France-Observateur, o
cineasta retomou o espírito combativo para agredir Vadim e exaltar a “moral do
autor”. Vadim respondeu ao processá-lo por difamação.
As
razões do ataque extrapolavam a amizade com Aurel. Truffaut estava preocupado
com a queda de credibilidade da Nouvelle Vague e temia que isso se refletisse
no rendimento de seu terceiro filme como diretor, Jules e Jim. Baseada em romance de Henri-Pierre Roché, a história de
amor de dois homens com uma mulher foi tratada com dureza pela censura, que
proibiu o filme para menores de 18 anos. Sendo assim, Truffaut recebeu a intimação
da Justiça num momento que considerava decisivo para o seu futuro.
Um fato cômico, diga-se de passagem,o processo ecoou na imprensa, que observava com atenção o embate de Vadim (com o apoio de Bardot e de Louis Malle) contra Truffaut, acompanhado em sua causa por Jean-Luc Godard, Alain Resnais, Jean-Pierre Melville, Claude Chabrol, Claude Sautet, Philippe de Broca e Pierre Kast. Responsável pela confusão, Bardot chegou a chorar no tribunal. E Godard foi expulso após perturbar a ordem. Considerado culpado depois de tudo, o réu foi obrigado a indenizar Vadim com UM FRANCO!!!!!!!!!!!.
A
Nouvelle Vague se diluiu assim que os ideais de coletividade esmoreceram e os
pilares daquela geração perderam o elo com a juventude que chegaram a
representar. Truffaut e Chabrol se renderam a um estilo clássico e conformado,
o mesmo que eles condenaram nos anos 1950. Imbuído de um pessimismo peculiar
desde Viver a Vida (1962), Godard investiu numa proposta que Jeancolas
definiu como “experimental, provocante, inventiva e irritante”. Nos créditos
finais de Weekend à Francesa (1967), ele radicalizou: “Fim da história, fim do cinema”.
Os
Sonhadores
Os
anos da Nouvelle Vague foram os anos de Charles de Gaulle à frente da França.
Líder das forças de resistência ao invasor nazista e chefe do governo
transitório entre 1944 e 1946, o general voltou ao poder em 1958 e lá
permaneceu por onze anos. O homem-forte da Vª República interferiu diretamente
na produção audiovisual francesa com um controle implacável do conteúdo de
filmes e programas de televisão. Até que ele perguntou a um assessor, bastante
preocupado: “Quem é esse Henri Langlois?” Por semanas, o fundador da Cinemateca
tirou o sono do alto escalão do governo francês.
A
agitação começou em fevereiro de 1968. Milhares de estudantes foram às ruas de
Paris para protestar contra a decisão insólita do Ministério da Cultura, que
destituíra o diretor da Cinemateca (e pai da mesma) por incompetência
administrativa. Tratava-se de um golpe do ministro André Malraux para implantar,
no comando da instituição, alguém manipulável, o qual foi prontamente repudiado
— e não apenas por estudantes.
Numa mobilização sem precedentes, os principais
cineastas do período organizaram uma manifestação diante do Palácio de
Chaillot, onde ocorriam as sessões desde 1965. Há anos separados por razões
pessoais diversas, os companheiros de Nouvelle Vague se reencontraram para
gritar “Viva Langlois!” Estavam acompanhados da nova geração, de onde
despontavam nomes como Jean Eustache, Philippe
Garrel (sim, o pai do nosso amado Louis) e Bertrand Tavernier. O melhor do
cinema francês estava unido em torno de uma causa, novamente.
O
mentor de tudo foi Truffaut, que interrompeu as filmagens de Beijos Proibidos (dedicado a Langlois) e ordenou seus empregados na Films Du
Carrosse a chamar a atenção do mundo para o escândalo da
Cinemateca.
Em dois dias, o escritório recebeu centenas de mensagens de incentivo, firmadas por cineastas como: Charles Chaplin, Fritz Lang, Josef von Sternberg, Carl Dreyer, Orson Welles, Roberto Rossellini, Jean Renoir, Jacques Tati, Robert Bresson e Akira Kurosawa.
Reforçados
pelo apoio de grande parte da imprensa francesa, três mil pessoas colocaram em
cheque o gaullismo naquela noite fria de 14 de fevereiro. O descaso com o
passado de Langlois seria utilizado como prova de acusação. Numa ofensiva
desmedida, porém, a polícia reprimiu o protesto com homens armados e cerca de
30 viaturas. Entre os feridos estavam Godard e Truffaut. Tudo
foi exibido nos dias seguintes pelos telejornais. A adesão popular aos
manifestantes crescia; os fatos eram documentados sem trégua também pela
imprensa internacional; profissionais de renome faziam críticas duras a
Malraux, dia após dia, em entrevistas coletivas disputadas. Tudo isso por causa
de um sujeito desengonçado e de sorriso terno. Renoir se emocionou numa
coletiva ao falar de Langlois, o “homem capaz de unir os fazedores de filmes de
boa vontade”.
Langlois
foi readmitido no dia 22 de abril. Quando a sala da rua Ulm foi reaberta, a 2
de maio, a juventude francesa já estava engajada em outra luta, agora em
repúdio à política educacional conservadora do gaullismo. O descontentamento
não era exclusividade dos estudantes, no entanto. Trabalhadores de toda a
França entraram numa greve que parou o país por um mês. Inclusive o cinema. Dez
anos depois da eclosão da Nouvelle Vague, chegara a hora de levantar a voz
novamente. Era maio de 1968. Em razão dos piquetes, das barricadas e do
confronto com as forças oficiais, os diretores — revelados oito a dez anos
antes — recuperaram a garra de alterar o estado das coisas. Em um gesto
espontâneo e coletivo, paralisaram o Festival de Cannes à força e interromperam
as filmagens. Eles desencadearam isso, por Langlois. Picuinhas à parte, o
cinema fez a diferença.
Com amor,
O Austero
O Austero
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