Querida Veronica
Wedgwood
Ainda não
abordei tudo o que está relacionado com Veronica Wedgwood. Repugna-me traçar a
verdadeira imagem dela, tal qual a tenho dentro de mim. Algum dia, foi a
primeira inglesa que lutou com entusiasmo e convicção por Die Blendung. Investiu tempo e trabalho na tradução. Ela também
simpatizava muito com Friedl, especialmente com a nossa relação: a aluna que
ama o seu professor e com paixão deixa-se formar
por ele. Friedl decepcionou-a depois por sua vida, por uma dependência
temporária dela. A frequente rejeição de Auto-de-Fé,
que realmente era relativa - já havia naquele tempo pessoas para as quais era
muito importante -, a pretensão de Massa
e Poder, que finalmente saiu e que ela tentou favorecer com um ensaio muito
positivo, mas sem nunca tê-lo lido realmente, a minha terrível decepção quando
percebi que ela não conhecia o livro, que este não o tinha tentado depois de
ter ouvido falar tanto dele durante os anos, finalmente - e isso foi o último -
o seu entusiasmo pela Thatcher, expressado por ela enquanto historiadora - ela
via em seu governo uma nova era elisabetana -, tudo isso faz com que seja quase
impossível para mim falar dela de maneira verdadeira e pormenorizada. Poderia
dizer tantas coisas que ela me confidenciou, mas não consigo, ouço a sua voz
calorosa, aliciante, vejo seu pai em Leith Hill diante de mim, de quem gostei a
primeira vista, sua mãe soberba, que não gostava da filha por que não desejara
ter uma filha e que por toda a vida foi uma opressão para Veronica. Sobre estas coisas, que realmente a
caracterizavam, não posso falar. Aquilo que escreveu pouco estimo. Ela não
tinha originalidade nem pensamentos próprios sobre nada. Mas gostava de
escrever, escrevia com afinco, lia fontes, cartas, documentos, diários, sua
curiosidade era realmente insaciável, mas não o suficiente, e principalmente:
ajustava seus pensamentos a quaisquer correntes de pensamento em voga, quer
fossem de cunho histórico-político, quer fossem de cunho psicológico. [...] Só
posso registrar traços pessoais seus, momentos nos jardim de Downshire Hill,
quando discutíamos o último capítulo da tradução e Friedl observava-nos da
janela do primeiro andar e preparava então o nosso chá. Foi Veronica que, com grande
tenacidade, exigiu de Jonathan Cape a publicação de Auto-de-Fé. De inicio, não estava em questão que ela traduziria o
romance. Eu pensara em Isherwood por que gostava de seu livro sobre Berlim. Só aos
poucos, com hesitação, Veronica manifestou a ideia de ela mesma traduzir o
texto – com a minha ajuda-, e eu concordei, com a ressalva de que o livro não
poderia sair durante a guerra. [...]
Eu gostava
realmente de Veronica. Confiava nela. Ela era o calor de quem eu tanto sentia
falta entre os intelectuais ingleses, pelo menos até onde os conhecia. [...]
Era difícil encontrar na historia espiritual humana uma estirpe parecida.
Com amor,
Elias Canetti
*** Festa sob as
bombas
Pg. 23-25
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